EUROVISION: quando música e geopolítica se tornam uma mesma partitura no inconsciente das grandes massas
- Geisel Ramos
- 5 de jun.
- 9 min de leitura
Atualizado: 9 de jun.
“A vida imita a Arte”.
Muito provavelmente todos já devem ter escutado esse chavão, e de fato algumas artes têm o poder de influenciar a sociedade de tal forma que seu opus permeia gerações e gera uma memória afetiva quando sua influência é em demasiado intensa.
O inverso também ocorre: a Arte também pode ser reflexo de fatos que estão fluindo a todo vapor no cotidiano, e isso acontece de modo bastante comum, por meio de inúmeras manifestações de caráter cultural, que se duradouras forem exibirão na sua linha temporal a alternância de tendências em variados campos da dimensão humana individual e coletiva.
Ainda desconhecido de boa parte dos brasileiros, o maior concurso de música do mundo ocorre anualmente na Europa desde 1956 (exceto em 2020, em razão do início da pandemia de Covid-19), ratificando a afirmação acima, pois em sua história o EUROVISION não apenas acompanhou o nascer e o ocaso de estilos musicais, mas também viu surgirem canções que o mundo inteiro cantarola até hoje sem ter a menor ideia de que foi neste projeto que elas foram ouvidas pela primeira vez.

Clássicos como “Volare”, “Non ho l´età” e “Dschinghis Khan” (este último ganhou uma versão brasileira, “Genghis Khan”, que foi febre nas discotecas na virada das décadas de 70 e 80), entre outros, revereberaram nos palcos europeus, que testemunharam o lançamento de artistas que ganharam fama além daquele continente, como a famosíssima banda ABBA, que levou seu país de origem, a Suécia, ao posto de campeã do ano de 1974 com a conhecida “Waterloo”.
Para a surpresa de alguns, não são apenas países europeus que participam do Eurovision. Todos aqueles que se encontram dentro da Zona Europeia de Radiodifusão – que geograficamente inclui não apenas a Europa, mas também o Norte da África, parte do Oriente Médio e as três nações do Cáucaso (Armênia, Azerbaijão e Geórgia) – são elegíveis para participar da disputa.
Em razão disso, certa vez Marrocos enviou uma melodia (em 1980), Turquia e Israel integram as edições desde a década de 70 e as repúblicas caucasianas se juntaram a esta celebração musical a partir do ano de 2007. Mas surpreendente mesmo é o fato de a Austrália (!) participar do show, algo que não passa pela traqueia de muita gente.

Não vou adentrar em detalhes pormenorizado sobre como funciona o Eurovision. Quem o quiser pode consultá-lo na internet, que dispõe de um farto material sobre o tema, ou até mesmo adquirir informações diretamente do site oficial do concurso, que está em inglês (www.eurovision.tv), mas as suas regras são simples de entender.
Antes de mais nada, vale ressaltar que o concurso é financiado principalmente por cinco países: Alemanha, Espanha, França, Itália e Reino Unido, grupo que é popularmente conhecido por Big Five e que tem um certo privilégio na competição (veja logo abaixo).
Os países que vão participar têm de escolher até uma data limite as composições inéditas para a competição, seja por indicação direta da emissora de TV local, seja por seleção interna em cada contestante (o que é mais comum).
Atualmente há duas semifinais, sendo que de cada uma saem dez canções, e estes vinte classificados se encontrarão na grande final com os Big Five e o país anfitrião do concurso, que tiveram o direito de passar direto para a última etapa da disputa (os Big Five por despejarem o dindim que banca a festa e o anfitrião por ter vencido a competição no ano anterior). Desta maneira, 26 (vinte e seis) canções disputarão o prêmio máximo.
E como o campeão é escolhido? Por meio de um sistema de votação, que mudou seu formato duas vezes com o passar dos anos. No início, um júri técnico apontava a composição vencedora, mas com o aumento progressivo do número de integrantes e o crescimento da popularidade do Eurovision, em 1997 estreou de forma experimental um sistema de televoto, onde os cidadãos europeus podiam escolher por ligação telefônica ou por SMS qualquer uma das concorrentes como a sua favorita, sendo proibidos de votar na representante de seu próprio país.

Dita modalidade de escolha se tornou a única no ano de 2004, aposentando o júri técnico, porém em 2010 a seleção pelos jurados retornou combinada com o televoto (daqui a pouco explico o porquê), e o somatório destas duas votações passou a definir o placar final.
O certame acontece na primavera do Hemisfério Norte (meados de maio), pois a ideia é que os sucessos ali executados ecoem comercialmente nas paradas e playlists por todo o verão, e a edição deste ano aconteceu semanas atrás, na Suíça, onde a Áustria se sagrou a ganhadora.
Em toda sua história, o Eurovision colecionou momentos emblemáticos e críticas também, sendo considerado uma instituição num continente caleidoscópio, mas de modo igual recebendo epítetos como “kitsch” e “lacrador”.
De fato, a qualidade musical tem declinado, privilegiando mais a estética visual do que a substância melódica, ofuscando o brilho da época em que o evento era visto como o corolário do ideal de harmonia almejado no pós-guerra mundial.
Atualmente tem se tornado plataforma para a promoção da agenda LGBT, produzindo também controvérsias envolvendo pautas geopolíticas, o que tem descredibilizado o valor artístico autêntico das composições, preterido em prol daqueles fatores.
Sobre o âmbito geopolítico, há certos pontos relevantes de análise, conforme vamos ler a seguir.
Votação por afinidade
Com a introdução da escolha popular mediante o televoto, no início dos anos 2000, surgiu algo que pode ser definido como votação por afinidade: os países começaram a dar a nota máxima (12 pontos) aos seus vizinhos geográficos ou a nações com quem tinham uma identificação étnico-política, criando subgrupos dentro do universo maior de competidores.
Assim, os países da Escandinávia trocavam a nota máxima entre si, o que se repetia entre as nações balcânicas. Grécia e Chipre (um país independente, mas majoritariamente habitados por gregos) sempre se davam mutuamente 12 pontos, algo similar com o que se passava com os pares Espanha/Andorra e Romênia/Moldávia.
A consequência desta “barganha” de votos foi o deslocamento geográfico dos primeiros lugares nas edições subsequentes para o Leste Europeu, que além de possuir mais participantes no concurso do que a Europa Ocidental, ainda contava com uma massiva votação que vinha de países como Alemanha e Holanda, por exemplo, pois ali residem grandes comunidades de expatriados oriundos de países como Turquia, Sérvia, Rússia etc, realidade que passou a incomodar muita gente.
Alguns especialistas em Eurovision julgam que a escolha por televoto foi o motivo de fazer com que a Itália abandonasse o festival a partir de 1997. Se for verdade, tem fundamento, pois era uma das suas mantenedoras e não mais figurava entre os melhores no placar final, suspeita essa que ganha força em 2011, ano em que os italianos retornaram à competição, exatamente quando passou a vigorar a apuração conjunta televoto com júri técnico.
Em direção inversa, a Turquia saiu da competição em 2013 para não mais voltar, após amargar posições modestas no momento em que o televoto não mais decidia sozinho o resultado. Curiosamente, ela criou o Türkvizyon, uma versão do Eurovision voltada para países e repúblicas russas autônomas nos quais se falam idiomas da mesma família linguística do turco, contando com quatro edições até hoje (por ironia do destino, a Turquia não venceu em nenhuma das quatro).
Israel
Israel, mesmo estando no Oriente Médio, participa do Eurovision desde 1973 pelas razões acima expostas, sendo um dos países que mais conquistaram o primeiro lugar (1978, 1979, 1998 e 2018). Porém, sua presença no concurso tem gerado alguns episódios de cunho político que não passam despercebidos.
Em 2004, o Líbano, seu vizinho do Norte e com quem mantém uma intensa animosidade histórica, estava prestes a debutar no festival com uma balada cantada em francês, mas quando soube que teria de transmitir ao vivo o show com todas as performances dos disputantes, desistiu.
A razão para este recuo foi porque o Líbano não reconhece o estado judeu como uma entidade política soberana, chamando aquela terra, até hoje, de Palestina, e por isso se negaria a mostrar o número israelense, o que seria proibido pelas normas do Eurovision.
Esta temática veio de novo à baila na edição de 2019, realizada justamente em Tel Aviv, quando os músicos da Islândia, ao comemorarem seu score final, exibiram uma faixa com o nome e a bandeira palestina. O casal mestre de cerimônia, com polidez, ignorou a afronta e o show continuou sem maiores incidentes.
A recente guerra que Israel trava contra o grupo terrorista Hamas após o massacre de 07 de outubro de 2023 não ficou incólume nas edições de 2024 e 2025. Em ambos os casos, as representantes israelenses foram hostilizadas e até ameaçadas de morte por diversos apoiadores da causa palestina, e no festival do ano passado a cantora Eden Golan precisou ser escoltada por dezenas de viaturas da polícia sueca até a arena onde o concurso teria lugar, na cidade de Malmö.
O conflito no Oriente Médio impactou a votação de Israel desde então, mas um detalhe chama a atenção: enquanto que o júri técnico de cada país deu as piores notas possíveis para as canções interpretadas por Eden Golan (2024) e Yuval Raphael (2025) – esta última uma sobrevivente da carnificina que ocorreu na festa rave Nova, no fatídico 07 de outubro – o somatório com o televoto atribuiu para elas, respectivamente, o 5º e o 2º lugar no resultado final, o que comprova que a narrativa antissemita despejada vinte e quatro horas por dia por grande parte da mídia não tem sido bem digerida pelos europeus.
Alguns artistas que participaram do Eurovision no passado coordenam um movimento para que Israel seja banido da competição, mas a Áustria, que será a sede do concurso em 2026, já adiantou que não vai apoiar eventual proibição, assegurando assim a participação dos israelenses, e a Alemanha foi mais longe: declarou que se este boicote prosperar, ela própria abandonará o festival.
Grécia x Turquia
No ano de 1974, a Turquia invadiu uma terça parte de Chipre, país partilhado por populações gregas e turcas, causando milhares de mortos e refugiados na comunidade grega e estabelecendo uma divisão na ilha que perdura até hoje (Lefkosia, sua capital, tem um muro que a atravessa de uma ponta a outra: é a Berlim que restou modernamente).
Em protesto, a Grécia não mandou ninguém para a competição no ano seguinte, retornando em 1976 com uma música cuja letra denunciava as atrocidades cometidas pelos turcos dois anos antes.
A cantora que a entoou de modo solene, Mariza Koch, assinou um termo de responsabilidade isentando a organização do Eurovision caso viesse a sofrer um atentado durante sua performance, pois era sabido que na plateia havia alguns turcos armados. Reza a lenda que Mariza se apresentou usando um colete à prova de balas por debaixo de seu vestido preto, algo que nunca se confirmou.
A televisão turca transmitiu o certame daquele ano, mas na hora em que a balada grega foi exibida, colocou em seu lugar uma canção nacionalista chamada Memleketim (Minha pátria).
Quanto a Chipre, teve sua estreia no ano de 1981, todavia apenas os artistas do lado grego são autorizados a competir no Eurovision, dado que o setor turco se autoproclamou república independente em 1983, e como nenhum país do mundo reconhece seu governo (exceto a Turquia), vive em completo isolamento diplomático.
Rússia
Semelhante ao que viveram gregos e turcos, a Geórgia não enviou representante para o Eurovision 2009, recebido pela Rússia, pois no ano anterior estes países se enfrentaram na Guerra da Ossétia do Norte, quando os russos ocuparam esta região separatista que está encravada em solo georgiano. Até hoje as relações entre os dois países são tensas.
Ademais, desde 2022 a Rússia não participa da disputa musical, tendo sido suspensa em retaliação à guerra que tem promovido contra a Ucrânia (que venceu a edição daquele ano com uma significativa votação).
Os idiomas
Muito embora seja um assunto já pacificado, a problemática envolvendo as línguas em que as músicas são cantadas vinha ocupando espaço na imprensa e na opinião pública, uma vez que de início havia a obrigatoriedade de os países trazerem composições em seus idiomas nativos, e após regra cair, a grande maioria das canções eram escritas em inglês, o que gerava um certo ranço dos outros países, como os que compunham o seleto Big Five, por exemplo.
Enquanto o tradicionalismo impera em Portugal, Espanha, França, Itália e Albânia – que quase sempre enviam peças em seus idiomas – vários países se utilizam dos falares de outros membros: somente neste ano de 2025, a Holanda cantou em francês, a Estônia entoou um satírico número em italiano e a representante da Finlândia berrou um rock com trechos em alemão.
Em 2007, a Romênia trouxe nada menos do que seis idiomas numa mesma música, e a Bélgica, por duas vezes na história do Eurovision, cantou em uma língua totalmente inventada.
De um modo geral, há ampla liberdade de escolha quanto à língua que os participantes podem adotar, o que embeleza a competição numa Europa naturalmente plural.
Enfim, mesmo não sendo mais tão badalado como décadas atrás, com polêmicas das mais variadas e cedendo espaço a um apelo mais comercial do que essencialmente artístico, o Eurovision vem marcando o imaginário de gerações de fãs que não abrem mão de uma vez no ano cantarem juntos a utopia de uma Europa que vem se tornando cada dia mais diáfana, na busca de manterem marcos identitários que um dia lhe foram caros.
E para você, caro leitor, que me acompanhou até aqui, deixo-lhe um presente: um vídeo com trechos das músicas campeãs de todas as edições do Eurovision até a presente data. Tenho certeza de que você encontrará alguma que vai lhe encantar!
Rede VOX NEWS
Fonte : Matéria e Produção Geisel Ramos
Publicação : Geisel Ramos
Edição : Nil Santos

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